Friday, March 09, 2007

Parte VII - Blue Transparency


Adhara fitava o dossel negro. A cor do tecido aveludado mesclando-se à penumbra em que se encontrava, como se o seu corpo estivesse sendo velado pela silhueta de um imenso ser alado.

Suspirou, constatando que, por mais confortáveis que fossem as camas do castelo de Donan, ela ainda não conseguiria dormir com plenitude. A insônia era um male que a perseguia desde a sua lembrança mais antiga, e parecia ter somente piorado a partir do início de sua adolescência. Estranhamente, poções do sono lhe faziam pouco, ou nenhum, efeito. Mesmo as mais potentes não eram capazes de garantir-lhe mais do que uma hora de sono a mais do que normalmente tinha em uma noite.

Virou-se no colchão, o corpo magro agora descansando de lado, as mãos segurando um dos travesseiros. Fechou os olhos. Se não poderia dormir, ao menos tentaria descansar seu corpo, embora a mente ainda se mantivesse alerta e repleta de pensamentos rápidos e, na maioria das vezes, desconexos. Foi então que ouviu algo que parecia batidas à porta...

Virou-se novamente e, usando os cotovelos para sustentar-se, arqueou o tronco para frente, o suficiente para divisar a porta. Fitou a madeira escura em silêncio, como se quisesse enxergar através da mesma. Quem poderia estar batendo àquela hora? Certamente Trowa não pensaria em ir passar a noite ali, com ela. Não quando eram hóspedes na casa de outra pessoa.

Concluindo que especulações e jogos de adivinhação não a levariam a lugar algum, Adhara sentou-se sobre a cama, passando uma das mãos displicentemente entre os cabelos em uma tentativa, praticamente inconsciente, de fazer-se mais apresentável para receber o visitante.

- Entre. – disse a garota.

Ao ouvir o comando da voz suave atravessando a grossa porta de madeira Suzannah o obedeceu com tranqüilidade. Em silêncio adentrou o local fechando a porta atrás de si, recostando levemente as costas na madeira bem trabalhada.

- Espero não ter lhe desperto em seus poucos momentos de sono.

Adhara meneou a cabeça em negativa. Mas logo deu-se conta de que, devido à escuridão do ambiente, Suzannah talvez pudesse não ter percebido o seu gesto. Estendeu uma das mãos de dedos finos até a mesinha de cabeceira mais próxima e ligou o delicado abajur que nela se encontrava. A luz tremeluziu antes de tomar a lâmpada por completo, banhando o quarto em um brilho amarelado.

- Não se preocupe, estava acordada. – respondeu a sonserina, fitando a outra com olhos atentos.

Caminhando até a ponta do leito, a jovem Deveraux acomodou-se perto da beirada deste, sentando-se sobre os próprios joelhos.

- Já faz um tempo que não conversamos. – Suzannah falava com um tom de voz baixo e fez uma pausa antes de continuar. – Lamento o afastamento.

- Tudo bem... Não é como se eu também não fosse parcialmente culpada por isso. Acho que acabei sendo distraída por... Outras coisas. – Adhara replicou de maneira serena. Sabia que deveria haver alguma razão para a outra morena ter vindo bater à porta de seu quarto em uma hora já avançada da noite. E queria que Suzannah percebesse que, mesmo que o recente distanciamento entre elas fosse algo real, ele não fora capaz de mudar o relacionamento que mantinham.

O silêncio tomou conta do ambiente por alguns instantes. E Suzannah deixou um suspiro escapar de seus lábios desistindo da tentativa de refrear sua vontade de contar a Adhara o que a perturbava naquele momento.

- Poucos minutos atrás passei em frente ao quarto de Mathieu e acabei ouvindo ele, Trowa e Julian conversando. Para resumir acabei descobrindo que fui condenada pelos crimes de outra pessoa. Gostaria mais do que nunca de estrangular Mathieu com minhas próprias mãos, mas existe algo desconhecido que me impede.

Ivory piscou, sendo pega de surpresa com o repentino fluxo de palavras. Então estivera mesmo correta ao presumir que a visita de Suzannah não fora casual. No entanto, não fazia idéia do que poderia dizer à outra sonserina, afinal sequer tinha conhecimento do conteúdo da conversa que ela entreouvira.

- Talvez fosse melhor que você tentasse entender esse sentimento desconhecido antes de tomar qualquer decisão. – sugeriu por fim.

- Sim. – concordou Suzannah deixando que sua voz fosse morrendo ao pronunciar cada letra, porém renovando-se ao inicio de uma nova frase. – E quanto a você e o Trowa?

Se Adhara não julgasse já conhecer a jovem Deveraux, poderia até sentir-se desconcertada com a abordagem mais que direta da morena.

- Então você notou? – devolveu a pergunta com outro questionamento, um sorriso leve se desenhando em seus lábios. A perspicácia de Suzannah fora uma surpresa, no mínimo, agradável.

Deveraux acenou de modo afirmativo com a cabeça.

- Ambos são bem discretos, mas dando atenção aos pequenos detalhes eu acabei percebendo. – ela completou correspondendo ao pequeno sorriso da jovem a sua frente. – Você está feliz?

Adhara abaixou o olhar por alguns instantes, a sombra de um sorriso ainda teimando em permanecer em seu rosto.

- Sei que pode ser considerado algo frívolo atribuir a causa de felicidade a um “namorado”... – levantou seu olhar apenas o suficiente para encontrar o de Suzannah – Mas, sim. Ele me faz feliz de uma maneira que eu não acreditava ser possível.

- Muito bom. – comentou Suzannah, com verdadeira alegria pela amiga. Provavelmente aquela era a primeira vez em muito tempo que sentia-se satisfeita ou contente pela felicidade de outra pessoa.

Um silêncio confortável formou-se entre as duas garotas. Cada qual perdida em seus próprios pensamentos, discretamente à procura de um tópico que valesse à pena ser discutido. Era engraçado de se constatar que, normalmente, quando duas amigas passavam algum tempo sem trocarem mais do que algumas palavras, certamente seria difícil fazer com que se calassem quando finalmente pudessem conversar devidamente. No entanto, tal situação não se aplicava em nada à elas. Adhara não sentia como se fosse desconfortável falar com Suzannah, muito pelo contrário. A questão é que ela sabia que não precisava dizer muitas palavras para que se fizesse entendida.

- Você ainda tem visto o Kovac? – finalmente lembrou-se de um tópico que vinha incomodando-a desde o passeio à Hogsmeade, quando conhecera aquele corvinal que lhe despertara uma sensação tão desagradável. No entanto tantas coisas aconteceram nas semanas que se seguiram... A jovem Ivory sentia-se parcialmente culpada por permitir que seu pai, Trowa e Meridiana varressem a preocupação com Suzannah de sua mente.

- Sim. Em teoria estou ajudando-o com aulas extras de poções. – ela respondeu com ironia. – Existe algo nesse garoto que é misterioso em demasia para o meu gosto. De certo modo fiz um acordo com ele, deixo que Alonso me treine, como ele costuma dizer, e em troca ele guia até certas pessoas com quem tenho assuntos pendentes.

- Por que você não me diz simplesmente que Kovac é um Comensal que está tentando recruta-la para o lado dele? – questionou Adhara, a seriedade costumeira voltando às suas feições e a própria voz, antes delicada e ligeiramente descontraída, adquirindo um tom mais seco, que buscava não dar margem a contestações. Era em momentos como aquele que seu parentesco com Kamus transcendia as meras barreiras sangüíneas e mostrava a verdadeira influência que possuía sobre a jovem de cabelos cinzentos.

- Não creio que seja apenas isso. Mas não existe uma explicação lógica para acreditar nisso, apenas confio em meus instintos. – Suzannah respondeu, com uma seriedade muito semelhante à da jovem Ivory.

Adhara meneou levemente a cabeça, concluindo que, enfim, não havia muito o que pudesse dizer ou fazer naquela situação.

- Não vou fingir que concordo com o que está fazendo. Mas posso dizer que a entendo, e que não pretendo interferir. Pelo menos não por enquanto. – ela fez uma pausa breve – Apenas se cuide, Suzannah. – finalizou encarando com profundidade as orbes azuis da outra garota e repentinamente notando, com uma pontada de surpresa que não pôde suprimir, o quanto aqueles olhos eram parecidos com os seus próprios... Suspirou, varrendo aquela pequena descoberta para o fundo de sua mente. Não era o momento para pensar naquilo. Examinaria aquele fato com cuidado em outra ocasião, de preferência quando sua mente estivesse mais límpida e centrada.

De certo modo havia uma ponta de felicidade em seu coração pela preocupação de Adhara. Mesmo que não fosse capaz de fazer a jovem entender seus motivos, saber que ela se importava era realmente gratificante.

Os laços que as prendiam uma a outra se tornaram mais fortes do que Suzannah poderia supor. E tal fato não lhe desagradava nem minimamente, pois a sensação era semelhante a certeza de se viajar o mundo todo, livre como um pássaro, e ainda assim ter um lugar para onde voltar.

No comments: